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As Margens do Velha, de Massuelen Cristina
Thais Rivitti
janeiro 2021
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Muito antes de surgirem as discussões pós-coloniais, ainda no início da década de 1930, Carlos Drummond de Andrade já observava, no poema “Sabará”, que naquela cidade mineira “tudo tudo é inexoravelmente colonial”. Já distante do período em que os bandeirantes se embrenhavam na mata (“O Borba sumiu”), os “bancos janelas fechaduras lampiões” do local permaneciam, para o poeta, como testemunhas de um passado – colonial – que se recusava a se extinguir.
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O poema de Drummond é retomado pela artista Massuelen Cristina, uma jovem moradora de Sabará, no vídeo As Margens do Velha, de 2020. Além de alguns versos que a artista cita em off enquanto vemos cenas da paisagem da cidade, no início e no fim do vídeo, seu trabalho também parece discutir essa relação entre o presente e o passado, o atual e o antigo, o contemporâneo e o arcaico.
O Rio das Velhas, que atravessa a cidade, é – ao lado de Dinorá Felipe Xavier, uma senhora de 85 anos – personagem principal do trabalho da artista. O entrelaçamento entre a paisagem e o cotidiano de Dinorá, entre a geografia de Minas e a biografia dessa mulher, é a costura que Massuelen tece, com engenho e sutileza, dando origem a essa obra que deverá ser a primeira parte de uma trilogia na qual a artista ainda está trabalhando.
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Já nos primeiros instantes do vídeo, o som da água do rio confunde-se com o som da água que é esguichada por uma mangueira que enche a máquina de lavar roupa da casa onde vive Dinorá. A eletricidade é puxada a partir de um ponto dentro da casa: o fio sai da cozinha, passa pelo vão do vitrô aberto e alcança o tanquinho – como é conhecida essa máquina, mais barata que a convencional, que não centrifuga a roupa. Ambiente simples, algo apertado (como indica a falta de mobilidade da câmera) e bastante improvisado.
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Dinorá conta que nasceu em 1936 no município de Rio Acima (também em Minas) e veio com a família para Sabará quando tinha 6 anos. Aos 8 já trabalhava. Enquanto estende uma colcha de cama branca num varal que se monta e desmonta na rua em frente de sua casa, ela revela que durante sua infância costumava pescar no rio com seu pai: águas limpas, barcos, peixes grandes. E diz também que nele lavava roupas, batendo-as nas pedras do rio e depois deixando-as quarar num gramado sob o sol – hábito antigo e relacionado à vida interiorana. Ela chegava às 7 da manhã e voltava às 6 da tarde. Poderiam ter sido dela as “pernas morenas de lavadeiras, tão musculosas que parece que foi o Aleijadinho que as esculpiu” a que Drummond se refere no mesmo poema.
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Com uma vida doméstica assentada em costumes simples, assistimos a nossa personagem falar ao telefone com um parente, cozinhar um picadinho em panela de barro, cortar em fatias finíssimas a couve-manteiga enquanto leva dois dedos de prosa. Ela toma um copo de cerveja bem gelada, fuma um cigarro, ajeita o cabelo. Cuida das plantas distribuindo o que parece ser a casca de algum alimento pelos vasos do quintal. Acompanhá-la em sua rotina instala em nós um tempo desacelerado, algo circular, típico dos afazeres da casa: lava, torce, estende, dobra, usa, suja, lava de novo. Prepara, corta, pica, refoga, cozinha, come, joga, lava, prepara mais.
A religião é outro foco aglutinador nessa rotina que vemos no vídeo. No rádio, o locutor avisa que vai se reportar à Bíblia e inicia uma preleção acerca da solidão. Imagens de santos católicos estão espalhadas pela casa. Assim como uma figa de madeira e um preto velho. E também outros bibelôs e suvenires: um elefante, um papai noel, canecas de viagens. Dinorá fala sobre como, mesmo sendo católica, entrou em contato com a umbanda e reafirma sua crença em Xangô das pedreiras. “Pedra rolou Xangô / Lá na pedreira / Segura pedra meu Pai / Na cachoeira”, canta. Em seguida, revela como construiu, junto com o pai e o marido, uma casa de três cômodos para viver com a família: eles tinham de carregar por um longo trecho latas cheia de cascalho e areia. Ela estava grávida de um de seus nove filhos. “Segura pedra, meu pai.”
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Outra cena marcante mostra Dinorá na cozinha, socando o alho num pilão de madeira, quando ouvimos – muito sutilmente – as badaladas de um sino lá fora. Num momento especial, em que a artista aparece junto da avó (não sua imagem, mas apenas sua voz), elas cantam juntas: “O sino da igrejinha faz belém belém/ Deu meia-noite o galo já cantou / Seu Tranca-Ruas que é o dono da gira / Ô corre gira que Ogum mandou”. Meio católico pelo sino da Igreja, meio umbanda pela canção. Meio-dia. Pausa pro almoço.
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A água que corre no Rio das Velhas “já viu o Borba”, diz o poema de Drummond. Conta-se que Borba Gato, um dos mais conhecidos bandeirantes brasileiros, encontrou ouro no Rio das Velhas e negociou com os governadores das capitanias de Minas e São Paulo sua liberdade (ele estava foragido depois de cometer um assassinato), em troca de informar a localização exata do minério, assumindo, depois dessa barganha, um posto oficial naquela região. Um episódio lateral na história brasileira, mas emblemático para compreender a formação do país, a prevalência da troca de favores como modo de operação da vida política.
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Se, por um lado, podemos entender que “permanecer inexoravelmente colonial” significa ter de lidar com essa herança pesada, por outro, o desejo de ultrapassar o passado numa ânsia modernizante também foi uma promessa que fez água no Brasil. O país vem se “modernizando” ao passo em que aumenta a exploração do trabalho, acelera-se a destruição do meio ambiente, precarizam-se as condições de vida nos grandes centros urbanos. Isso para não estender demais a lista.
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Nem nostalgia, nem crença no moderno. Massuelen apresenta-nos uma personagem altiva. Uma mulher, negra, pobre, que criou nove filhos trabalhando como empregada doméstica. É difícil olhar para essa história e não perceber como a a vida é dura para as mulheres negras e periféricas. Mas há também fartura e entusiasmo: um acúmulo de saberes (culinários, religiosos, manuais), uma satisfação em cuidar (da filha especial, das plantas, da casa, da roupa), uma personalidade carismática, independente e jovial. A recente emergência do conceito de ancestralidade por parte de alguns artistas fala um pouco sobre o interesse em olhar o que ficou para trás no processo de “modernização”. É isto que parece estar no centro das preocupações de Massuelen numa obra como essa: uma certa ancestralidade, que talvez não se dirija a um corte social específico, mas uma ancestralidade da mulher comum, resgatando vivências que são bastante familiares mesmo para quem não frequenta as giras de umbanda, não soca alho com o pilão, nunca pôs a roupa para quarar no sol nem sabe fazer tricô. Coisas que a nova geração (e esse tema geracional se apresenta no trabalho, na medida em que se trata de avó e neta) nunca fez mas talvez queira experimentar agora.
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