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Aliviades pelas imagens

Talita Trizoli

12 de janeiro de 2021

 

Talvez um dos conceitos que mais tenham sido mobilizados ao longo dos anos em momentos de crise política e identitária no âmbito do coletivo seja a ideia de Catarse – mas não necessariamente de modo consensual sobre sua aplicabilidade e seu conteúdo. Entre o campo artístico, e mesmo entre o medicinal, remonta a Aristóteles (sim, ele novamente! Livro VIII da Política e, na Poética, o capítulo 7 em especial) a tentativa de explanação sobre o caráter da experiência catártica e sua função, sua aplicabilidade. Do uso como expurgo de doenças e nocividades do corpo, a mesma perspectiva se estende para o espírito, sendo que o catalisador para tal processo, em vez de remédios e venenos, ocorre via a experiência estética, pelo contato e pela fruição com o fenômeno artístico – é claro que Aristóteles faz reverência aos setores do teatro e da música, mais do que às artes ditas visuais, mas, considerando que há mais de meio século, pelo menos, as fronteiras entre as diferentes modalidades artísticas já foram nubladas, tal aspecto não é de tanta relevância

neste breve ensaio. 

Ora como função apaziguadora pelo choque da intensidade das emoções, ora por sua função moralizante e educativa, a concepção de catarse parece se encaixar nas mais diversas ocasiões da vivência política: a convergência emocional de grupos e suas experiências coletivas de estupefamento e indignação, as tentativas sucessivas de movência das forças imperativas de vida, a educação estético-afetiva, todas interligadas pela condição trágica de experiências que demandam enfrentamento e mudanças sociais. Nesse sentido, é importante pensar em como essa dimensão catártica vem sendo mobilizada por artistas comprometidos politicamente com agendas sociais, especialmente quando os agentes produtores desses discursos artístico-poéticos são integrantes de frações da malha social em condição de vulnerabilidade. É nessa perspectiva que se torna pertinente lançar um olhar para a produção da artista travesti Vulcanica Pokaropa, principalmente em conexão com outras figuras que também articulam estratagemas catárticos em prol de justiça social e simbólica.

Natural de Presidente Bernardes, no interior de São Paulo, a jovem de 27 anos possui uma formação híbrida entre Fotografia (Faculdade Tuiuti – PR), Teatro e Circo (Mestrado UDESC-SC e cursos/oficinas livres, respectivamente), bastante evidenciada em suas escolhas formais e temáticas. Seu trabalho mais recente, e que recebeu maior atenção crítica até o momento, é justamente o resultado de suas investigações acadêmicas: a série Desaquenda, um conjunto de declarações, diálogos e narrativas entre Vulcanica e suas amigas e colaboradoras sobre a experiência de vidas dissidentes, seus desafios e riscos. Em formato de documentário, o conjunto de 27 vídeos (pelo menos esse é o número até agora) traz as falas diversificadas de diferentes travestis e trans atuantes no sistema das artes, colocando em pauta suas respectivas percepções criativas e as angústias existenciais em territórios atravessados. Seguindo a assertiva de Lippard, em que vez ou outra é preciso abrir mão de um refinamento formal em prol da linguagem, quando o fenômeno artístico lida com militâncias e política, as imagens captadas, os ângulos e a montagem dos vídeos apresentam uma crueza imagética que salienta justamente a condição de improviso, de arranjos e precariedade de vidas que criam suas próprias

fendas para existir.

Integrante do último Panorama de Arte do MAM-SP, com curadoria de Julia Rebouças, Desaquenda teve uma tentativa quase frustrada de exibição anterior. A artista foi ganhadora do Prêmio de Arte Contemporânea da Aliança Francesa em Florianópolis, em 2019, mas a exposição individual com que seria contemplada recebeu um pedido de cancelamento por dirigentes da instituição, sob o argumento de que as obras não eram “adequadas”, indicando com isso uma condição transfóbica de exclusão a priori, algo que paira sobre a cabeça das pessoas de subjetividade dissidente – a exposição, por fim, ocorreu após uma mobilização on-line.

É considerando então essa chave das violências simbólicas e físicas das quais pessoas trans, travestis, racializadas, feminilizadas estão à constante mercê que faz sentido a mobilização catártica encontrada em alguns trabalhos da artista, tanto em algumas variações de Desaquenda como na versão apresentada na mostra do Panorama, que contava não apenas com os vídeos, mas também com manequins suspensos vestidos com fantasias e indumentárias, armadas de facas, foices e tochas – não em uma condição exibicionista, mas como anjos vingadores da causa travesti, uma intervenção divina à la deux ex-machina que visa a intervir na fragilidade e instabilidade dessas vidas – e também com as pinturas de ícones da série Intercessão. 

Nesse último item, produção mais recente de Vulcanica, ela toma como referência as imagéticas de ex-votos e santos da cultura católica e rearticula seus signos para contemplar as subjetividades dissidentes e seus desejos e angústias, ainda sem o acolhimento cristão. Em conversa com a artista, chama atenção o fato de que essas imagens e histórias são um referencial afetivo de sua infância, por pertencer a uma família católica, mas é importante considerar nesse projeto não apenas sua memória juvenil, mas a perspectiva crítica acrescentada a essas imagens, que ora fazem as vezes de uma catarse vingativa das violências cotidianas, ora indicam a demanda de ícones referenciais para suas flutuações afetivas. De todo modo, são imagens que procuram sanar uma ausência representativa – de signos, vocabulários, arquétipos – mas que também confabulam sonhos de autodefesa, vingança, resistência.

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